A mentira de pescador deixou de ser a narrativa da captura de um peixe gigante indomável, daquelas que ressalta a destreza de seu autor. A inverdade mais oportuna é dizer que pescou, apenas. Paga-se bem por isso. Em Icapuí, no Litoral Leste do Ceará, pessoas então pobres e desempregadas aumentaram o patrimônio para mais de R$ 1 milhão em cerca de cinco anos sem pescar nem comercializar uma só lagosta, mas graças a ela.
Com uma carteira de pescador na mão, comerciantes, taxistas, bugueiros e empresários, alguns dos quais nunca entraram numa embarcação, participam de quadrilha interestadual que frauda o seguro-desemprego para pescadores artesanais, mais conhecido no setor como seguro-defeso. Deveria beneficiar somente quem está em atividade. Icapuí é apenas uma de dezenas cidades do norte e nordeste onde é verdade a existência de pescadores de mentira.
Investigamos e encontramos diversos participantes do esquema fraudulento, que envolve também políticos e servidores públicos. Na série "Pescador de mentira - Fraude no seguro-defeso", publicada hoje e amanhã, entenda como ocorre essa fraude milionária comandada por pescadores de dinheiro público.
A eficiência da quadrilha fraudadora só vai até o modo de organização e termina por seu excesso. A facilidade com que as irregularidades ocorrem, em caminho livre para desvio de recursos, é tanta que, ao transbordá-la, os envolvidos se entregam. Até perceberem, contudo, que o crime está 'dando na vista', a rotina mantém-se inalterada e calma como as vilas praianas de onde vêm os endereços dos "pescadores". A saída obrigatória de casa não é para o mar, e sim, ao banco a fim de sacar o benefício de um, dois, 200 supostos trabalhadores do mar. O primeiro passo é conseguir os documentos.
Quando Francisco Josieldo (nome fictício) recebeu a visita de um certo Jerônimo, também morador da Vila volta, em Aracati, foi só para pegar a 'papelada'. Antes, claro, uma conversa encorajadora. Ele me disse que era só entregar documentos e resolvia o resto, já estava fazendo de todo mundo".
A condição é de Jerônimo, o negociante, ficar com a metade do seguro, cerca de R$ 2,2 mil. "Mas ele disse que ia tirar só o da viagem pra pegar os documentos. Chegando lá, entregaria para o patrão".
Cearense da Bahia
'Lá' é Alcobaça, no sul da Bahia, mais de dois mil quilômetros distante da Vila Volta, em Aracati. Jerônimo, um ex-pescador dessa comunidade, agora mora naquele município baiano onde teria "vida melhor". Atua como agenciador das fraudes a partir do registro geral de pesca (RGP), a carteira profissional de trabalhador liberado pelas colônias de pescadores. Josieldo confessa-nos que não é pescador de lagosta como está descrito em sua carteira liberada pela colônia de Aracati. Quando vai ao mar, "vez em quando", é só para trazer o almoço da família.
O seguro-defeso é destinado a profissionais que tenham, exclusivamente, a pesca artesanal como atividade econômica de sustento. Ele deve possuir o registro de pesca da lagosta e da piracema (peixes do tipo robalo, branco e camurim, que vivem em água doce). Josieldo não tem nenhum desses requisitos para obter o benefício e sabe disso, "mas disseram que dava certo". Não estavam mentindo.
Nem para "Ivone", servidora pública em Itarema, no litoral oeste do estado. O nome e o endereço domiciliar figuram numa lista com outras duas dezenas de mulheres pescadoras de lagosta. Nenhuma jamais pescou o crustáceo ou ao menos vai ao mar. Mas alguém com o seu cartão-benefício vai ao banco seis meses por ano.
As fraudes no seguro-desemprego do pescador artesanal estão, agora, na mira de diversos órgãos federais e estaduais. O desvio de dinheiro público chega à casa dos bilhões de reais, mas o montante ainda não pode ser mensurado, porque o modo de operação da fraude só há pouco tempo chamou a atenção. Era um peixinho e tomou proporções gigantescas.
Lagosta
No início deste mês, o tribunal de contas da união concluiu auditoria realizada sobre pagamentos feitos entre os anos de 2012 e 2013. Apontou desvio de aproximadamente r$ 19 milhões. Não passa de uma gota no meio do oceano. A conta do assalto, de acordo com os principais investigadores da fraude, pode chegar a r$ 3 bilhões nos últimos dez anos em todo o Brasil.
Grande parte do seguro é paga a pescadores da lagosta (seis parcelas no valor de um salário mínimo por ano). O estado do Ceará é o maior produtor do crustáceo no Brasil, porém foi o que mais diminuiu o ralo dos desvios no setor, ao ponto de não constar nem entre os cinco principais pagadores do seguro. A fraude no país foi descoberta pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), em cooperação com o Ministério Público do Ceará.
As fiscalizações aumentaram e, com o cerco sendo fechado aos fraudadores no Ceará, eles migraram para outros estados. A reportagem teve acesso, com exclusividade, aos relatórios de nomes, documentos e endereços fraudados pela quadrilha interestadual. Em Beberibe, Fortim, Aracati e Icapuí obtemos confissões de vítimas e de autores desses crimes. A polícia federal investiga empresários, políticos, presidentes de associações e até servidores públicos federais envolvidos no esquema. No entanto, não revelaremos nomes, uma vez que as investigações estão em curso.
AUTOR: DN
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