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quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O APELO MORTÍFERO DO ESTADO ISLÂMICO

Compreender o Estado Islâmico (EI) é tarefa das mais complicadas para quem está à distância. Vários aspectos se misturam para definir o movimento – os conflitos históricos no Oriente Médio, as intervenções militares na região nos últimos anos, a crise econômica nos países ocidentais, a psicologia frágil dos jovens contemporâneos e o fascínio das ideologias totalitárias de fundo religioso, entre tantos outros (até as mudanças climáticas, segundo alguns).

Dois fatores são mais relevantes, por distinguir, no conjunto, o EI de tudo o que houve antes dele. Estão escancarados no próprio nome. Primeiro, o EI é um estado – e não apenas um grupo terrorista. Segundo, ele é islâmico – e não adepto de qualquer outra religião, ideologia ou visão de mundo. A reunião dessas duas características torna o combate ao EI um desafio distinto de qualquer outro já enfrentado pelos líderes ocidentais.

Mais do que outras fés, o Islã vê as esferas pública e privada como uma só. Criar um governo conduzido por leis religiosas sempre foi aspiração de vários grupos islâmicos fundamentalistas, sem que isso signifique necessariamente a adesão a práticas violentas. Há grupos dessa natureza também em outras religiões, como cristianismo ou judaísmo. Pesquisas mostram, porém, que a população islâmica é mais sensível a questões que misturam religião e estado, como a liberdade de expressão (tolerância à blasfêmia e a ofensas) ou de vestuário (proibição do véu).

Não se trata apenas de pontos de fé, mas sobretudo de identidade, que marca o pertencimento a um grupo com hábitos e ideias comuns, segundo argumenta um ensaio de Shadi Hamid, da Brookings Institution, publicado depois dos atentados de janeiro em Paris. “É um erro acreditar que a prática e a identidade religiosas podem ser contidas com sucesso por meio da ‘liberalização’ das comunidades muçulmanas imposta pelo Estado, ou pelo ‘financiamento’ a moderados para começar a deitar as fundações do equivalente muçulmano a uma Reforma Protestante”, diz Hamid. “É até irônico que a memória da Reforma e o Iluminismo tenham sido usados para suprimir o pluralismo legal, a diversidade de religiões e até práticas religiosas individuais em nome do universalismo.”

É por isso que um muçulmano pode, coerentemente com sua crença, condenar os ataques de Paris e, ao mesmo tempo, condenar as liberdades que permitem a publicação de caricaturas de Maomé ou até mesmo os shows de rock. Parte da atração do EI perante a juventude europeia está em simplificar tudo, dizendo que a única resposta possível para a devassidão dos infiéis é a violência. Mas o Ocidente não pode entrar nesse jogo e confundir os muçulmanos que soltam as vaias nos estádios de futebol com aqueles que dão tiros e se explodem com bombas. Ambos os atos são condenáveis, e os sentimentos que os movem podem ter a mesma origem – mas os resultados são distintos. Dizer que são a mesma coisa é reproduzir a lógica totalitária do EI, é contribuir para que o primeiro grupo se identifique mais e mais com o segundo.

A origem dessa lógica mortífera é conhecida. Trata-se do wahabismo, uma vertente do islamismo sunita adotada no século XVIII pela família Saud, até hoje no poder na Arábia Saudita. Mais que qualquer outra linha religiosa, o wahabismo impõe a identidade absoluta entre religião e estado, entre a lei terrena e a lei divina, com a doutrina de “um rei, uma autoridade, uma mesquita”. Até hoje a Arábia Saudita é governada por um princípio conhecido como “Ikhwan”, uma adaptação moderna das ideiais wahabitas originais, espalhadas pelo Oriente Médio graças às riquezas do petróleo.

Osama Bin Laden rebelou-se contra os sauditas, criou a Al Qaeda e pôs a Arábia Saudita entre os infiéis por acreditar que as ideias originais do wahabismo haviam sido pervertidas em sua terra natal. Seu objetivo declarado sempre foi criar um califado que resgatasse a pureza religiosa. Mas sua estratégia para fazer isso era cautelosa. Ele pretendia primeiro conquistar as populações locais dos países muçulmanos, para depois erguer seu Estado.

Quando o EI foi fundado em 2006, como sucessor da Al Qaeda no Iraque, a liderança do movimento no Paquistão e Afeganistão, que nem fora consultada, julgou prematuro. Os eventos que se sucederam deram razão a essa visão, pois até 2010 as disputas com tribos locais e a presença de tropas estrangeiras na região foram suficientes para manter o movimento de um tamanho irrisório.

Tudo mudou quando Abu Bakr al-Baghdadi assumiu a liderança, em 2010, e passou a pôr em prática as ideias de um tratado de 2004, intitulado "Idarat al-Tawahoush" (algo como “gestão da selvageria”). Atriibuído a um certo Abu Bakr Naji, o texto circulava entre os rebeldes iraquianos na prisão americana de Camp Bucca, onde cumpriam pena Al-Baghdadi e ex-oficiais do regime de Saddam Hussein, depois unidos no EI. Estão lá os planos para a criação do califado, os ataques a alvos ocidentais, a supressão dos “moderados”, o aliciamento da juventude muçulmana no estrangeiro, com o uso de tecnologias modernas – e a tentativa de arrastar o Ocidente para uma guerra da qual o califado sairia fatalmente vitorioso.

Para o domínio saudita sobre a população sunita do Oriente Médio, o EI, como Bin Laden, sempre representou uma ameaça – apesar de fortunas sauditas financiarem a pregação religiosa de matriz wahabita, que fornece o caldo de cultura para o EI atrair seus recrutas. Ao contrário do gradualismo da Al Qaeda, o EI adotou um plano consciente mais agressivo, baseado na violência e na batalha de comunicação.

Até o momento, o pano deu resultado. O EI conquistou um vasto território no Oriente Médio, montou as bases econômicas, políticas e jurídicas de um Estado policial, estabeleceu uma invejável estrutura de comunicação e publicidade, recebeu a adesão de vários outros grupos jihadistas espalhados pelo mundo – da Líbia ao Iêmen – e implantou células terroristas eficazes no Ocidente.

“O EI explora conscientemente a dinâmica desesperadora entre a ascensão do Islamismo radical e o ressurgimento dos movimentos xenófobos etno-nacionalistas que começam a minar a classe média – o esteio da estabilidade e da democracia – na Europa”, escreve no jornal The Guardian o antropólogo franco-americano Scott Atran. Enquanto o EI passa horas e horas tentando aliciar um único indivíduo, ouvindo seus problemas e lamentações, tentando conectar-se intimamente com ele, o discurso oposto é transmitido pela comunicação de massas, demonizada pelos recrutadores. “Falta às abordagens contrárias à radicalização o apelo positivo, que dá poder, e a abrangência da história do mundo do EI”, diz Atran. “O primeiro passo para combater o EI é entendê-lo. 

Ainda precisamos fazer isso. O erro nos custará caro.”

AUTOR: BLOG DO HELIO GUROVITZ/G1

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