O assédio a mulheres nas ruas, nos ônibus, no espaço público em geral, embora presente em qualquer relato feminino e perceptível a todos, tornou-se invisível. É confundido com "elogio", com "cantada", com "brincadeira". De tão banalizada, a prática nem chega a ser reconhecida como questão de debate. Não existem pesquisas, não há menção em leis, não há dados específicos sobre o assunto, e a grande maioria das denúncias não recebe atenção devida.
"Para a mulher, é um incômodo, é constrangedor e causa medo de que algo pior vá acontecer. Mas existe uma naturalização dessa violência. Não há compreensão na sociedade de que a violência psicológica e simbólica também é uma violência contra a mulher", afirma Luana Marley, advogada da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares na área de enfrentamento da violência contra a mulher.
Depoimentos
Na semana que passou, a campanha nacional "Chega de Fiu-Fiu", desenvolvida pelo coletivo de ativistas Olga, de São Paulo, alcançou visibilidade no País ao lançar uma cartilha online sobre assédio e divulgar um mapa colaborativo com depoimentos e casos de abordagens agressivas em locais públicos relatados por mulheres de todo o Brasil. Em Fortaleza, foram agregados, até agora, cerca de 20 desabafos de pessoas que já sofreram esses tipos de intimidações.
As ocorrências vêm dos mais diversos locais da Capital. "Estava andando de bicicleta na rua da minha casa, quando veio um cara e colocou a mão dentro do meu short. Cheguei em casa chorando e, o pior, tive vergonha de dizer o que aconteceu", diz um dos relatos, registrado na Rua Teresa Cristina, no Centro.
"Ao passar pela calçada de um vizinho, esse solta elogios ofensivos sobre minha idade e aparência, além dos olhares nojentos. (...) Sinto-me constantemente violada e insultada por esses acontecimentos", contou outra mulher. O caso aconteceu na Rua Dom Pedro I. Outra vítima relata um episódio mais grave ocorrido no transporte público. "Estava voltando da faculdade em um ônibus lotado e um homem de uns 50 anos começou a se esfregar no meu ombro".
Denúncia
A ideia da mobilização é combater a prática dando voz a mulheres que passaram por situações de assédio. Seja por medo ou pelo descrédito no poder público, muitas nem chegam a denunciar as ocorrências. Outro agravante é que, em Fortaleza, as poucas iniciativas de apoio direto ao público feminino, muitas vezes, são abandonadas no meio do caminho.
Um exemplo é o ponto de acolhimento para atender as vítimas de assédio nos coletivos que seria instalado no Terminal do Siqueira. Anunciado em maio deste ano, nem foi iniciado. Segundo a promotora Elsuérdia Andrade, chefe do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público Estadual do Ceará (MPCE), autora da proposta, o projeto foi revisto pois não se encaixava nas competências do órgão, cujo foco é o combate à violência doméstica e familiar.
Conforme ela, no próximo ano, a ideia poderá ser repassada a outros órgãos, de segurança ou do Poder Judiciário, para que eles possam tomar a frente da iniciativa, mas nada foi definido.
Para fazer o registro de denúncias, só existem duas possibilidades: o Ligue 180, canal da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, e as delegacias. Segundo Rena Gomes, titular da Delegacia da Mulher de Fortaleza (DDM), a prática do assédio verbal se caracteriza como Importunação Ofensiva ao Pudor, crime previsto na Lei das Contravenções Penais. Apesar disso, ela explica que, não é fácil identificar e responsabilizar os culpados.
Enfrentamento
"Na verdade, a gente só chega aos autores quando é uma coisa frequente. Quando acontece sempre no mesmo lugar ou quando é sempre a mesma pessoa. Sendo algo mais amplo, fica complicado fazer essa investigação e identificar o autor. Mas nada impede que a mulher denuncie", ressalta.
Mas a denúncia esbarra, ainda, em outro problema. Conforme a delegada, a DDM é orientada a receber, prioritariamente, casos relacionados à Lei Maria da Penha, voltada para a violência doméstica e familiar. Os chamados pequenos delitos devem ser tratados junto às delegacias das áreas.
Para Márcia Aires, titular da Coordenadoria de Políticas Públicas para Mulheres, da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos (SCDH), é aí que acontece outro tipo de violência, a institucional. "Muitas vezes ela sofre a violência e, quando chega na delegacia, ainda sofre a violência institucional. O profissional não está preparado para atender. Acha que é besteira", diz.
Prática é reflexo de relações assimétricas entre gêneros
A prática do assédio constitui a chamada violência simbólica, na qual o homem impõe uma posição de poder e dominação sobre a mulher, explica Jânia Perla, professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC). "Isso envolve um contexto assimétrico de relações, onde existe uma posição privilegiada dos homens e a pressuposição de que eles têm o direito de fazer qualquer comentário sobre o corpo da mulher, e tratá-la como um objeto, mesmo que não haja receptividade", afirma.
A especialista destaca, ainda, que o ato masculino nem sempre é consciente. Conforme ela, o assédio apenas reflete a cultura condescendente com o comportamento machista existente na sociedade de hoje. "Nós vivemos em uma cultura, principalmente no Nordeste, que legitima essas atitudes. De certa forma, a pessoa que pratica essa violência, na sua percepção, não está fazendo outra coisa a não ser exercer sua masculinidade", observa Jânia.
Mudança de visão
Márcia Aires, da SCDH, ressalta que o fim do assédio depende, essencialmente, de uma transformação cultural. Segundo ela, a Coordenadoria de Políticas Públicas para as Mulheres não tem o poder de coibir ou punir a prática, função atribuída às forças policiais e ao sistema judiciário. No entanto, o trabalho é centrado na sensibilização da sociedade por meio de campanhas que visam mudar opiniões e promover a igualdade entre os gêneros.
"Mudanças de comportamento não são fáceis de realizar. Mesmo após a luta histórica da mulher por direitos, ainda vivemos em uma sociedade patriarcal machista, que tem a mulher como objeto, como propriedade. Onde, se ela está usando determinada roupa, é porque está dando espaço. Isso ocorre tanto no imaginário masculino como no feminino. É essa visão que nós tentamos mudar", frisa Márcia.
Na opinião da coordenadora, políticas segregadoras, como as propostas de coletivos ou assentos exclusivos para mulheres, não são solução. Pior, reforçam as diferenças. A base do enfrentamento a esse tipo de violência, segundo ela, é não deixar de denunciar. "Temos que transformar as pessoas pelo ato de denunciar. Mostrar que a gente quer respeito, igualdade e não ser discriminada pelo simples fato de ser mulher", pontua.
FIQUE POR DENTRO
Cerca de 50% das queixas são de violência moral
De acordo com dados repassados pela Coordenadoria de Políticas Públicas para Mulheres, a Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza recebeu, de janeiro a outubro deste ano, um total de 7.904 denúncias de violência contra o gênero feminino. Destas, pelo menos 58% (4.607 queixas) correspondem a casos de violência moral ou psicológica, que visa abalar a reputação da mulher ou a causar danos à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento pessoal, respectivamente. A classificação inclui crimes como ameaças (3.671 denúncias), difamação (125), injúria (775) e calúnia (36).
Mais informações:
Para mais detalhes sobre a campanha Chega de Fiu-Fiu, acesse http://chegadefiufiu.Com.Br/.
Em caso de denúncia sobre assédio, procure o Ligue 180 ou a delegacia da área mais próxima
AUTOR: DN
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