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quarta-feira, 20 de junho de 2018

NO CEARÁ, DESAPARECIDOS DA VIOLÊNCIA

NO RASTRO DOS SUMIDOS

Por Fátima Sudário

As informações começaram a chegar aos repórteres do Núcleo de Jornalismo Investigativo do O POVO em 2017. Davam conta de corpos descartados no canal da favela Babilônia, no Jagurussu. Eram pessoas que sumiam das comunidades onde viviam. Nada disso foi registrado em boletins de ocorrência. O jornalista Demitri Túlio foi, então, seguir esse rastro e, neste especial, conta as histórias possíveis.

Com o fim da "pacificação", em 2015, entre facções que comandam o tráfico de drogas no Ceará, Fortaleza passou a experimentar o fenômeno do desaparecimento de pessoas nas periferias da capital cearense. Vítimas da tirania das organizações criminosas, cidadãos e os próprios criminosos passaram a ser alvos por motivação de vingança ou imposição do terror nas áreas onde o Estado é menos.

O desaparecimento em decorrência da violência das facções, geralmente, não é enredo de boletins de ocorrências, inquéritos policiais, denúncias do Ministério Público nem de processos na Justiça cearense. Daí a dificuldade para sistematização de casos, dados e acompanhamentos.

Nos dois primeiros dias da série de reportagem, O POVO conta a história de casos mapeados pelo repórter nos territórios de Caucaia e do Grande Jangurussu. Em Caucaia, município da Região Metropolitana de Fortaleza, a delação de uma adolescente sobre o desaparecimento de uma amiga – também adolescente – deu na descoberta de pelo menos 26 assassinatos e de quatro pessoas que, executadas, não tinham o paradeiro conhecido pela família nem pela polícia.

No Grande Jangurussu, a suspeita de sete pessoas "desaparecidas" nas mãos de uma facção e que seus corpos teriam sido ocultados no canal da Babilônia.

Na terceira matéria, O POVO sai do contexto das facções e mergulha no desparecimento do frentista João Paulo há quase três anos. Esse teve boletim de ocorrência. O rapaz de 20 anos, segundo o Ministério Público, sumiu após ser preso por policiais militares a mando de um empresário do ramo de postos de combustíveis. Outra modalidade da violência que faz desaparecer.

UMA CARTOGRAFIA DO MEDO

Por Gil Dicelli

A estética busca traduzir a cartografia da violência que some com pessoas na periferia de Fortaleza, vítimas da brutalidade que lhes avizinha. As representações dos corpos são preenchidas por mapas imaginários, ruas e vidas sem saída, palavras e números que delimitam uma dura realidade.

O design da página esquadrinha esse cenário de caos, os elementos ultrapassam os limites da ilustração e modificam o desenho do espaço editorial, as colunas de textos são afetadas; e as cores, duras e tristes, divisam conteúdos.

O território do medo, que muitos teimam em não ver, já não está mais circunscrito à periferia. Os indícios se espalham pelos asfaltos e calçamentos, por todos os bairros.A cegueira não tem mais lugar. O lugar é abrir bem os olhos. Para onde vamos?

Gil Dicelli é editor-executivo do Núcleo de Imagem
O RISCO DE SUMIR NA MÃO DO CRIME
A história de duas jovens em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, revela um rastro de pelo menos 26 assassinatos e o fenômeno do desaparecimento de pessoas nas comunidades invadidas pelas facções no CearáPor Demitri Túlio
As periferias de Fortaleza e da Região Metropolitana viraram lugares de desaparecer pessoas. Sumir se tornou parte do cotidiano. O fenômeno, não percebido no lado mais assistido da cidade, ganhou contornos de terror na zona empobrecida. Foi depois que as facções criminosas passaram a se inscrever como poder na disputa dos territórios pelo tráfico de drogas no Ceará, notadamente a partir de 2015. Por medo de represália ou envolvimento direto com o crime, as histórias dificilmente são narradas em boletins de ocorrência ou chegam aos organismos públicos que lidam com vítimas da violência urbana no Estado.

A vida de quem mora nesses cantos “sombreados” pelo medo passou a ser um inferno. Principalmente para os cidadãos, mas também para os bandidos. O POVO conta, a partir de hoje, narrativas sobre desaparecidos e o tormento de ter de conviver com a possibilidade de ser sumido pela mão das facções de traficantes.

Sexta-feira, 13 de dezembro de 2017, 18h17min. Na sede da Delegacia de Polícia Metropolitana de Caucaia, um pai, de 37 anos, relata que a filha, Vitória Rayane, está sob ameaça de uma facção. É que a garota, de apenas 13 anos, havia testemunhado o assassinato da amiga Antônia Monalisa Fernandes, de 14 anos. A garota também está na delegacia.

Para uma delegada e uma escrivã, o pai de Rayane conta que a filha, após se encontrar com a amiga Monalisa, teria ido para uma festa em uma praia do litoral de Caucaia (Região Metropolitana de Fortaleza). Saiu, segundo o pai, sem seu consentimento. Apesar dos 13 anos, ele diz, a filha “tinha o costume de sair sem dizer para onde ia”. E sempre foi “uma peleja” para que informasse o destino e de quem se acompanhava.

Naquela sexta de dezembro a história mudaria de enredo. Segundo depoimento do pai, um dia depois de ganhar o mundo, Rayane “voltou assustada para casa”. Era madrugada do sábado, por volta das 5 horas. “Pai, me bota eu pra dentro que mataram a Monalisa agora. Se não, vão me matar também”, reproduziu o pai na delegacia.

Rayane, de acordo com depoimento, teria dito que pelo menos nove pessoas, entre elas mulheres, haviam participado da execução de Monalisa. A vítima teria sido assassinada e o corpo ocultado “por causa de facção”. Mas a causa não é clara. Entre os matadores estariam um homem conhecido por “Mateus e outro por GTA”.

Na delegacia, a adolescente, ouvida em termo de declaração e numa conversa confusa, afirma que Monalisa depois de ser executada foi levada para ser enterrada “pro lado do Bom Jesus”, uma bairro de Caucaia. E que “vocês (os policiais) não vão encontrar o corpo dela inteiro, não”, disse.

Sem proteção do Estado na condição de testemunha, adolescente e moradora de uma comunidade tomada pelo ódio entre facções, Rayane foi assassinada no dia 28/12/2017. Semanas depois de ter ido à delegacia. O pai da menina e outros familiares, segundo o escrivão Josenildo Menezes, 54, tiveram de ir embora do Ceará.

Os restos mortais de Monalisa só foram encontrados este ano, no último dia 12, durante a Operação Soure – protagonizada pela Delegacia Metropolitana de Caucaia. A garota foi esquartejada e parte do corpo ocultado em um terreno próximo ao prédio da Justiça, em Caucaia. Os policiais chegaram ao local depois da prisão e confissão de Francisco Fábio, 20. Um dos autores das barbáries.

O caso das adolescentes Rayane e Monalisa, de acordo com o Josenildo Menezes, é uma das pontas de uma teia criminosa que revelou a relação entre pelo menos 26 execuções. Muitos dos assassinatos precedidos pelo desaparecimento das pessoas, no caso seis. Vítimas que tinham ou não envolvimento na disputa entre as facções Comando Vermelho (CV) e Guardião do Estado (GDE) pelo território do tráfico, principalmente, nas comunidades de Itambé I e II, na periferia de Caucaia.

NÚMERO DE DESAPARECIDOS CRESCEU DE 2016 PARA 2018

Por Demitri Túlio

Nos primeiros quatro meses deste ano, pelo menos 670 pessoas desapareceram no Ceará segundo dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Os casos de 2018 superam 2016 (655) e 2017 (622) quando comparados a igual período. Os dados não identificam quantos sumiram por causa da violência das facções ou quantos boletins de ocorrência (BO) tratam disso.

De acordo com nota enviada pela SSPDS, o Sistema de Informação Policial (SIP) agrega, na tipificação “desaparecimento de pessoa”, as mais variadas informações e circunstâncias narradas pelos noticiantes quando fazem o BO na Polícia Civil. Mas não contempla “subtemas para especificar as vítimas”. No total, em 2016 sumiram 1.845 contra 2.149 pessoas.

A SSPDS informa que o número de registro de boletins de ocorrências não significa que as pessoas continuem desaparecidas. “Há muitos casos em que as pessoas voltam para casa e a família não comunica à delegacia”.

Quanto ao achado de corpos de indigentes, que pode ser um dos indicativos de desaparecimentos nas cidades, a Coordenadoria de Medicina Legal (Comel) informa que, em 2018, foram sepultados 62 pessoas não reclamadas por famílias. Contra 192 do ano passado.

Para cada corpo, existe um prontuário contendo as informações relativas ao cadáver, à guia policial de encaminhamento, aos laudos de perícia e de necropsia e fotografias. Também é coletado material genético para confronto de DNA e impressões digitais, caso seja necessário.

Segundo a Comel dados referentes aos cadáveres enterrados são cadastrados em um banco de dados que torna possível a localização deles posteriormente. “Respeitando a dignidade humana e seguindo as normas de sepultamento no Brasil, os corpos sem identificação e os não reclamados são sepultados de forma humanitária, em covas individuais com local devidamente registrado”.

O POVO entrou em contato com o Núcleo de Assessoria dos Programas de Proteção (Napp) e com o Centro de Referência e Apoio à Vítima de Violência da Secretaria da Justiça do Ceará. Nos dois órgãos também não há registro de casos sobre desaparecidos por causa das facções.
TESTEMUNHAS NÃO TIVERAM PROTEÇÃO APÓS DEPOIMENTO
Por Demitri Túlio

Vitória Rayane, 13, executada pela facção após denunciar na Delegacia Regional de Caucaia o assassinato de Antônia Monalisa Fernandes Marques, 14, deveria ter sido incluída no Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçado de Morte (PPCAM). E o pai da garota, no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas do Estado do Ceará (Provita). Não foram.

Em nota, o Ministério Público de Caucaia informou que “a inclusão nos dois programas não ocorre compulsoriamente. O primeiro requisito é a voluntariedade e o MPCE não tomou ciência da vontade de Vitória Rayane e seu pai terem requisitado a inclusão nos programas”.

Na delegacia da Região Metropolitana de Fortaleza, de acordo com o escrivão Josenildo Menezes, 54, teria sido oferecida a proteção para pai e filha. Mas os dois não teriam aceitado.

Vitória Rayane denunciou o assassinato e o desaparecimento de Monalisa em 13 de dezembro do ano passado e 15 dias depois foi morta por integrantes da facção Guardiões do Estado (GDE). O pai e outros familiares tiveram que ir embora de Capuan, em Caucaia, onde vivam.

O Ministério Público também informou, na resposta enviada ao O POVO, que mesmo coma atuação intensa das facções não há registro nas promotorias de Justiça de Caucaia, do recebimento de denúncias de pessoas que desapareceram nas comunidades onde moram no município.

Segundo a nota, “em casos de pessoas desaparecidas, a investigação fica sob a responsabilidade da Polícia Civil, que deve instaurar inquérito para apurar as causas do desaparecimento. Ao fim da investigação, a depender do resultado do inquérito, o MPCE atuará”.

A Operação Soure foi fruto de uma investigação do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco) com as promotorias de Caucaia e Polícia Civil.

Por segurança, O POVO não divulga o nome do pai de Vitória Rayane.
AFRICANO DESAPARECIDO FOI ENTERRADO NO PISO DE UMA CASA

Por Demitri Túlio

O desaparecimento do africano Francisco José Barbosa de Oliveira Filho, também conhecido por Wesley, seria a origem da investigação que daria na Operação Soure e na descoberta da suposta autoria de pelo menos 26 assassinatos engendrados em meio à guerra entre Comando Vermelho (CV) e Guardiões do Estado (GDE), em Caucaia.

Segundo o escrivão Josenildo Menezes, 54, o quebra-cabeça começou a ser montada depois que uma testemunha foi à Delegacia Metropolitana de Caucaia, em 9/11/2017, revelar onde Wesley estaria enterrado. O africano, de acordo com o policial seria dependente químico e teria uma dívida com traficantes do Comando Vermelho. Ele foi executado, teve parte do corpo queimado e decepado. Depois, foi enterrado debaixo do piso de uma casa abandonada.

A informação da testemunha levou à prisão Felipe dos Santos Gomes, 23, Mofado, Jacaroa, Mateus, Playboy, Rato, Rômulo de Lima Santos, 21 e Amilson Ferreira Lourenço, 18.

A prisão de parte da quadrilha deu na descoberta de mais cinco corpos masculinos. Quatro deles estavam desaparecidos e dois tiveram as cabeças cortadas. Segundo o escrivão Josenildo Menezes alguns eram rivais da facção Guardiões do Estado, mas havia um que foi julgado e morto por sido julgado dedo duro.
A INCERTEZA DO SILÊNCIO

Sete corpos teriam sido ocultados no canal da Babilônia. Pessoas que teriam desaparecido nas mãos de uma facção, no Grande Jangurussu Por Demitri Túlio

Antes de ser preso, um dos acusados da chacina das Cajazeiras se exibia em uma das comunidades do Grande Jangurussu. Na rua, além de desfilar com armas ao lado de outros criminosos da Guardiões do Estado (GDE), o rapaz se empabulava dos feitos cruéis da facção.

Numa dessas conversas sobre terror à calçada, o homem revelou que, no canal da Babilônia, a facção havia “desovado sete corpos”. Pessoas que, de repente, sumiram do convívio de favelas como Gereba, Babilônia, São Cristóvão, Unidos Venceremos e Conjunto Palmeiras.

Sem constrangimento, o jovem contou de uma mulher que estava grávida e os traficantes se incomodaram com o que ela estaria falando na comunidade e fora dela. Entre os corpos estariam, também, rivais de outra facção, suspeitos de “deduragem”, bandidos que haviam desrespeitado “o crime” e gente com as quais a quadrilha cismava ou tinha interesse se apossar de algo delas.

Ao ser preso, depois de se recuperar de um tiro por tentar resistir à investida de policiais militares, o rapaz se calou sobre o suposto descarte dos sete desaparecidos. E a polícia decidiu não fazer incursão no canal da Babilônia.

Uma fonte policial, ouvida pelo O POVO, não ignora a chance de a história macabra ter fundamento. Mas afirma que a demanda envolvendo as facções é tão difusa e aumentou tanto de 2015 para cá, que dificilmente haverá uma investigação mais aprofundada e específica sobre gente que desapareceu em bairros da periferia Fortaleza.

A não ser que a investigação esteja ligada a um crime de repercussão que exija do Estado resposta midiática. Muitas das ocorrências, afirma o policial, vão para a vala comum e não passam da superficialidade de um boletim de ocorrência, quando são feitos.

Na região do Grande Jangurussu, onde o membro da GDE ostentou a narrativa, pessoas desaparecerem. O policial conta que moradores dali já chegaram a informar que corpos seriam enterrados por trás do terreno do Centro de Triagem de Resíduos Sólidos, no sopé do antigo lixão de Fortaleza.

A fonte observa que, por medo de ser executado ou ter alguém da família morto, ninguém vai à delegacia fazer um boletim de ocorrência sobre o sumiço de um vizinho e até um parente. O mais comum é a família da vítima abandonar a casa ou ser expulsa da favela após o desaparecimento. No caso do sumiço de pessoas envolvidas com o tráfico ou de inimigos, eles dificilmente serão reclamados nas delegacias, na Defensoria Pública ou em dois núcleos da Secretaria da Justiça do Ceará.

O POVO perguntou, por e-mail, à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) quantos inquéritos foram instaurados de 2015 para cá, ano do fim da “pacificação” entre as facções, para apurar casos de pessoas desaparecidas vítimas da guerra pelo território do tráfico de drogas. A SSPDS não informou.

Também foi perguntado quantos registros os órgãos da SSPDS fizeram de pessoas desaparecidas no Gereba, Unidos Venceremos e Babilônia, na região do Grande Jangurussu. Também não foi respondido.

O POVO opta por omitir nomes, inclusive o do integrante da facção que contou sobre os corpos no canal da Babilônia, por causa da segurança de fontes e testemunhas.
DESAPARECIDO, TORTURADO E QUEIMADO

Por Demitri Túlio

No mesmo território e entorno onde o criminoso da GDE espalhou sobre os corpos no canal, enredos sobre outros desaparecimentos. O POVO identificou alguns casos. A sina do comerciante Manoel Pedro Birino, 59, é uma dessas tragédias que virou rotina na periferia de Fortaleza.

Seu Birino, como era conhecido, saiu de moto de sua residência para verificar um problema com um de seus inquilinos no dia 19/10/2017 e não voltou mais. Ele era dono de uma vila, com mais de 12 casas, construída na antiga ocupação Unidos Venceremos. O pequeno empresário acabou sequestrado pela mesma facção que teria ocultado os sete cadáveres no canal da Babilônia.

A quadrilha, além de confiscar as casas de Manoel Birino, cismou que ele era informante da polícia. Após três dias sumido, seu corpo foi recolhido pela Polícia Forense do Ceará (Pefoce). Estava sem identificação, com marcas de tortura e parcialmente carbonizado.

O cadáver havia sido encontrado em um barraco na favela do Gereba, situado no sopé do antigo lixão do Jangurussu. Só foi identificado quando um amigo da família e a filha do comerciante conseguiram, no necrotério, fazer o reconhecimento dos restos mortais de Birino.

Após o desaparecimento e execução de Birino, todos os inquilinos da vila do comerciante foram expulsos das casas da vítima. Hoje, as residências estão abandonadas.
CRUZ VERMELHA ACOMPANHA FAMÍLIAS DE DESAPARECIDOS

Por Demitri Túlio

No Rio de Janeiro, por causa da escalada dos conflitos urbanos decorrentes do tráfico de drogas, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) iniciou um trabalho de acompanhamento com familiares de desaparecidos por causa da violência.

A ONG presta ajuda humanitária para parentes de pessoas que sumiram por causa da violência, dos conflitos armados, dos processos migratórios e dos desastres naturais. De acordo com o Comitê, os familiares “também são vítimas, sofrendo uma série de consequências físicas, emocionais e psicossociais, muitas vezes agravadas por dificuldades jurídicas e econômicas”.

Segundo o site da instituição, o CICV promove o desenvolvimento de mecanismos para busca de pessoas desaparecidas e, em caso de morte, a identificação. A estratégia é tentar sensibilizar o poder público e outras entidades “sobre a atenção e o acompanhamento adequado aos familiares”.

De acordo com o site do comitê, a obrigação dos Estado de dar resposta a esses casos foi reconhecida na Conferência Internacional de Especialistas Governamentais e Não Governamentais sobre Desaparecidos. Foi realizada em Genebra, na Suíça, em 2003.
TRÊS MULHERES DECAPITADAS E ENTERRADAS NO MANGUE

Por Demitri Túlio

Não fosse um vídeo que circulou insistentemente pelo WhatsApp, entre os dias 6 e 9 de março deste ano, o paradeiro de três garotas poderia ainda ser uma incógnita para as famílias. Depois de serem brutalmente torturadas e decapitadas, os corpos de Ingrid Teixeira Pereira, de Darciele Anselmo de Alencar e Nara Alyne Mota de Lima foram enterrados no lamaçal do mangue do rio Ceará no limite entre Fortaleza e o município de Caucaia, no bairro Vila Velha.

A tirania dos criminosos, integrantes da facção Comando Vermelho (CV) segundo investigação do 7º Distrito Policial, foi exibida nas redes sociais sem nenhuma cerimônia. E foi o rastro deixado na web que resultou na prisão de cinco adultos e um adolescente responsabilizados pela barbárie.

As garotas, segundo uma fonte policial, teriam deixado o CV para se juntar ou passar informações à facção Guardiões do Estado (GDE). “Rasgaram a camisa”, no jargão do crime, e se bandearam para a quadrilha inimiga segundo as investigações. Mas as famílias negam o envolvimento das vítimas com os traficantes.

Depois de identificar pelos vídeos e por delações, policiais do 7º Distrito Policial e da Divisão de Homicídios prenderam Antônio Honorato dos Santos, 42, sem passagem pela polícia; Luiz Alexandre Alves Silva, 23, que respondia por roubo; Diego Alves Fernandes, 21, já processado por receptação, corrupção de menores e formação de quadrilha; Bruno Araújo de Oliveira, 23, e Júlio César Clemente da Silva, 28. Um adolescente também foi recolhido.
MP DO RIO DE JANEIRO FAZ DIAGNÓSTICO SOBRE DESAPARECIDOS

Por Demitri Túlio

O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) apresentou, na no final de abril, o diagnóstico Desaparecimento nas Burocracias do Estado. Um relatório sobre um fenômeno que gerou 7.937 registros de desaparecidos no estado fluminense nas mais diversas vertentes de causas, entre janeiro de 2013 a fevereiro deste ano. Para a socióloga e pesquisadora Thais Lima Duarte, umas das responsáveis pelo estudo, a subnotificação e outros entraves são obstáculos para pesquisa de um problema que ainda carece de protocolo tanto para registros e sistematização de informações quanto para o acolhimento da família ou do reclamante. E quando o assunto é atravessado pela ação das facções ou das milícias, como uma das causas do desaparecimento, ele cai numa vala sem fundo. Há fragilidade desde a denúncia à coleta de informações e o distanciamento do poder público com o tema. Confira a entrevista.

O POVO - Desde quando o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) faz o diagnóstico de pessoas desaparecidas?

Thais Lima Duarte - É o primeiro relatório que o MPRJ faz em relação ao Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (Plid). A demanda nasceu de um diálogo entre o Centro de Pesquisa e Inovações e a Assessoria de Direitos Humanos do Ministério Público, onde o Plid está alocado.

OP - Qual a base de dados utilizada?

Lima - Foi a do próprio Plid que tem um sistema de informações e reúne dados de diversas fontes do Rio. Informações da Polícia Civil a partir dos registros de ocorrência dos desaparecimentos, da Fundação da Infância e da Adolescência (FIA) e também de empresas privadas em relação a corpos não reclamados de pessoas enterradas como indigentes no Rio.

OP - Quantas pessoas desapareceram no Rio, vítimas de facções criminosas entre 2017 e 2018?

Thais Lima - O Plid não fornece esse tipo de informação, porque não faz uma relação entre pessoas desaparecidas e necessariamente a causa específica tendo como causa a ação de facções. Há alguns relatos de pessoas que desapareceram, conforme a narrativa de familiares, por conta da milícia. Quantitativamente ainda é muito pequeno perceber dentro do universo dos “corpos não reclamados” que aquelas pessoas enterradas como indigentes identificados, a família indicou como a causa da morte a ação de miliciano. Foram apenas dois casos. Esses dados são importantes para chamar a atenção que o fenômeno do desaparecimento pode estar relacionado, por exemplo, com a ação de milicianos.

OP - O medo de represália, no caso da facção e da milícia, faz com que a família do desaparecido não faça o boletim de ocorrência?

Thais Lima - Não é possível indicar quantas pessoas estão desaparecidas, de fato, no Brasil e no Rio de Janeiro. O desaparecimento é um fenômeno que implica um grande grau de subnotificação pela falta de registro em um órgão público e, sobretudo, à Polícia Civil. Isso não é necessariamente causado pelo medo da família em sofrer algum tipo de represália. Muitas vezes é causado pela falta de informação, por um distanciamento entre as instituições do Estado e os cidadãos, que por isso não reportam o desaparecimento. Inclusive a gente não pode dizer que o Plid é representativo justamente porque não conseguimos mensurar de fato o nível de desaparecimento no Estado. Na verdade a gente não consegue nem dizer que os registros da Polícia Civil são representativos por conta da subnotificação.

OP - O corpo “indigente” é uma sombra no registro de desaparecidos por causa das facções?

Thais Lima - Não encontramos no diagnóstico uma relação direta entre o desaparecimento e a relação com as facções. A gente não pode dizer que a questão do indigente tem a ver com facções.

OP - O diagnóstico cataloga quais vertentes de desaparecidos?

Thais Lima - Indicamos várias causas e isso é um dado muito relevante da pesquisa. Em geral, as pessoas desaparecem por causa de conflito intrafamiliar ou por questões individuais e subjetivas. Mas têm algumas declaradamente sociais, como, por exemplo, a ausência de notificação de encarceramento e de óbito. Ou seja, acontecem determinadas situações na vida das pessoas por falta de comunicação à família e os parentes fazem um registro de desaparecimento. Por outro lado, é muito difícil categorizar o desaparecimento conforme uma única vertente. O desaparecimento é um fenômeno complexo, heterogêneo, sendo necessários vários olhares para compreender.

OP - Por exemplo?

Thais Lima - Em alguns casos, foi apontado conflito intrafamiliar como causa do desaparecimento e a gente pode entender que estavam envolvidas questões de gênero, uso de drogas, ausência de notificação de encarceramento. São várias categorias presente na base de dados para caracterizar o fenômeno, na verdade elas se mesclam entre si. No mínimo, precisaríamos de uma a quatro categorias para explicar um desaparecimento.

OP - Qual a aplicação prática do diagnóstico?

Thaís Lima - Busca reforçar as fortalezas dessa ação e tenta reverter algumas fragilidades existentes. No caso do Plid, em especial, o diagnóstico é fundamental porque o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) tomou o programa como nacional e está em processo de expansão. Os resultados poderão ser usados com projeção nacional (nos outros MP). Em geral, as principais recomendações são: tratar o fenômeno do desaparecimento como um fenômeno complexo que não pode ser explicado sob um único prisma; É importante a criação de protocolo tanto de registros e sistematização de informações quanto para o acolhimento familiar; Mediação entre os órgãos do Estado e a família e maior interlocução entre os órgãos de Estado para facilitar o fluxo de informações.
CENÁRIO NO RIO DE JANEIRO

7.937

Desaparecimentos foram registrados pelo Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (Plid)

4.861

Foram solucionados, com atuação direta ou não do Plid

64%

Dos desaparecidos são do sexo masculino

70 %

São pessoas entre 12 e 34 anos

52%

São indivíduos de cor “preta e parda”. 23.74% são brancos

66,5%

Dos desaparecimentos são por motivo indeterminado

14%

Têm como causa do sumiço o conflito intrafamiliar

6%

São relacionados à perda de contato voluntário

3,4%

À ausência de notificação de óbito

3%

Estão ligados ao transtorno psíquico

2,72%

Dos desaparecimentos têm como causa ao uso de drogas
ONDE ESTÁ JOÃO PAULO?
Na terceira matéria da série, O POVO sai do território das facções para narrar os pedaços da dor de Margarida de Sousa, mãe do frentista João Paulo que desapareceu depois de ser preso por policiais militares de Maracanaú. A busca pelo filho já dura quase três anos Por Demitri Túlio
Margarida de Sousa, 37, não é mais a mesma pessoa. Ela falta um pedaço. Depois que o filho mais velho, o frentista João Paulo de Sousa Rodrigues, 20, desapareceu após de ser preso, não há um dia em que ela não seja torturada pelo revés da presença e a falta de notícias sobre o paradeiro da cria. “Só sabe da dor quem passa por ela”, ressente após quase três anos no limbo de quem se transformou na mãe de alguém que sumiu.

A última imagem pública de João Paulo, para o azar dos denunciados, foi gravada por uma câmera de segurança na avenida Conêgo de Castro, no Parque Santa Rosa, em Fortaleza, no dia 30 de setembro de 2015. Prova conseguida por um tio e o pai do filho de dona Margarida de Sousa já que a polícia, de início, relutou para investigar com interesse.

A investigação iniciada na angústia da mãe amadureceu até que o promotor Marcos Renan Palácio, da 1ª Vara do Júri, denunciou que João Paulo estava a caminho do trabalho – o posto de combustível Ceará II – quando sua moto OSH-5864 foi interceptada por uma viatura da Polícia Militar (CP1471/FTA), lotada em Maracanaú, e por um Palio preto. Veículo onde foi colocado à força e no qual trafegavam o sargento da PM Haroldo Cardoso da Silva, 53, e o empresário Severino Almeida Chaves, denunciados pelo Ministério Público.

Na rádio patrulha estavam os cabos Francisco Wanderley Alves da Silva, 49, Antônio Ferreira Barbosa Júnior, 45, e o soldado Elidson Temóteo Valentim, 30. De acordo com o inquérito da Delegacia de Assuntos Internos (DAI) da Controladoria Geral de Disciplina do Ceará (CGD) os três, o sargento Haroldo e o dono do posto seriam os responsáveis pelo “arrebatamento e sumiço” do frentista.

Desde então, a casa de Margarida de Sousa virou uma ausência. O filho teria sido executado, relata o MP e a DAI, por policiais “justiceiros” contratados como seguranças clandestinos do proprietário do posto. João Paulo, explica o promotor Marcus Renan, foi apontado pelos militares como informante de uma quadrilha que assaltou o posto onde o rapaz acabara de ser contratado.

“Eu penso assim, será que esses policiais não têm famílias? Nunca passaram pela dor de alguém tirar a vida de um filho seu? É muito triste, muito doloroso. Ninguém nunca queira estar na minha pele”, remói Margarida de Sousa arrancada de uma metade dela.

A família ficou desestruturada. “O pai dele ficou assim (desenha em gestos a angústia), não gosta mais de sair. Ele não é o pai biológico, mas o criou desde a idade de três anos”, descreve Margarida, auxiliar de serviços gerais de uma escola pública de Maracanaú e pequena empresária. “Quando se perde uma pessoa que já se espera perder é natural, mas quando se é pego de surpresa? É muito doloroso”, lava os olhos.

O quarto de João Paulo, agora, é do outro filho. João morava lá com a esposa e a neta de Margarida. Algumas roupas a mãe guardou porque a saudade dói latejada. Outras, o irmão dele usa. A cama do casal, a companheira levou quando foi embora porque o tempo venceu a espera. “Eles não tinham quase nada”. A casa de Margarida onde a família cabia completa tem um quintal e nos fundos do terreiro uma construção ficou pelo meio do caminho. Não deu tempo João terminar.

Em quase três anos de buscas, de cartazes espalhados pelas cidades e de trotes sobre o paradeiro de João, o amedronto não acuou Margarida Sousa nem a impediu de dar entrevistas denunciando os policiais e o dono do posto pelo sumiço do frentista e da moto da vítima.

“Nunca tive medo porque não devo nada a ninguém e se quiser vim tirar minha vida, pode vim tirar. Mas vão tirar a vida de uma pessoa inocente, como tiraram a vida de meu filho. Tenho certeza que meu filho pagou pelo erro dos outros. Se ele fosse envolvido com alguma coisa errada, a gente já tinha sabido. Ele não era bandido”, decreta mãe.

A saudade é o pior castigo. “Pra mim, ele está vivo no meu coração porque nunca o encontrei e nunca foi velado. Pelos comentários que as pessoas falam, ele não está mais vivo. Mas nada é impossível para Deus”, tenta se convencer e ao mesmo tempo apela para que digam o que fizeram do filho.

“Eles tiraram a vida de uma pessoa inocente, quero que paguem por isso. E quero que digam onde está meu filho, eu preciso saber e guardar ele num canto digno. Ele não era bandido, não era animal, era um cidadão. Um animal quando morre se joga em qualquer canto. Ele era um ser humano, precisa de um canto digno”, reivindica a mãe.

Contra João Paulo, nunca foi provado qualquer ligação com o crime.
A "PERVERSIDADE" DE FAZER O OUTRO DESAPARECER

Na prática, de acordo com a investigação da CGD e denúncia do Ministério Público (MP), João Paulo desapareceu nas mãos dos quatro policiais militares e de um empresário que os contratou. Mas, segundo Arimá Rocha, advogado da família do frentista, “tecnicamente” o MP não o trata como desaparecido.

João Paulo, narra o processo criminal da 1ª Vara do Júri de Fortaleza, foi vítima de um homicídio e a ocultação de seu corpo é apontada como um ato planejado dos réus para esconder provas e dificultar a instrução na Justiça.

“Ele é mais uma vítima da violência promovida por agentes do Estado em conluio com particular. Este é o conteúdo da denúncia e está fundamentada em provas e minuciosa investigação da CGD”, diz Arimá Rocha.

O advogado diz que o “desaparecimento” do corpo da vítima “tem também um significado de perversidade e a realização de um ato de extrema violência, a ponto de não permitir sequer que os familiares enterrem o seu ente querido. Demonstra-se a frieza e a perversidade do crime”.

Os quatro policiais militares e o empresário foram denunciados pelo promotor Marcus Renan Palácio por homicídio duplamente qualificado. Segundo Renan, a execução foi tramada entre matadores e contratante “mediante paga ou promessa de recompensa e por motivo torpe”.

A outra qualificadora aponta que o crime teria ocorrido “à traição, de emboscada e por dissimulação ou outro recurso que dificultou a defesa da vítima”. Os PMs e o empresário também foram denunciados por roubo, pois a moto de João Paulo sumiu. Além disso, respondem por organização criminosa e ocultação de cadáver.

Os PMs (sargento Haroldo; cabos Wanderley e Antônio Ferreira; soldado Elidson Temóteo) estão presos pela segunda vez.O empresário Severino Chaves também está na cadeia.
POLICIAIS E EMPRESÁRIO ALEGAM INOCÊNCIA

Os quatro policiais militares negam ter executado e desaparecido com o corpo do frentista João Paulo. O POVO teve acesso aos depoimentos gravados dos denunciados pelo Ministério Público. À época dos interrogatórios, o caso estava na 5ª Vara Criminal, e era acompanhado pelo promotor Rinaldo Janja e pelo Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco).

Os três policiais que interceptaram a moto de João Paulo apresentaram na Justiça, praticamente, a mesma versão sobre a abordagem feita em João Paulo no dia 30/9/2015.

Segundo os cabos Francisco Wanderley e Antônio Ferreira e o soldado Elidson Valentin, naquele dia, a viatura na qual patrulhavam teria perseguido duas motos que trafegavam em alta velocidade. A pilotada por João Paulo teria parado e a outra ignorou a investida policial.

O cabo Wanderley, comandante da viatura, afirmou que, durante a busca de arma em João Paulo, um carro preto parou do nada para verificar o que estava ocorrendo.

João Paulo, de acordo com Wanderley, teria dito que os três ocupantes do carro eram amigos dele. “Essas pessoas afirmaram que ele (o frentista) iria emprestar a moto. Com o fim da abordagem, ele entrou no veículo civil e outra pessoa levou a motocicleta”.

O frentista teria seguido sem que os três policiais fizessem qualquer verificação da placa do carro que apareceu e da documentação dos ocupantes. Nem busca de arma foi feita.

No depoimento, o sargento Haroldo Cardoso, da reserva, afirmou que “não tinha nada a ver” com o caso e que o carro preto seria dele como consta na deníncia do Ministério Público.

João Marcelo Pedrosa e Paulo Quezado, advogados do empresário Severino Chaves, entendem que “a acusação é improcedente e no curso da ação penal demonstrarão o equívoco do MP”.
DEFENSORIA PÚBLICA DO CEARÁ ACOMPANHA DOIS CASOS DE DESAPARECIDOS

Através da Rede Acolhe – um Programa de Atenção Integral às Vítimas da Violência, a Defensoria Pública do Ceará acompanha o caso de duas pessoas desaparecidas. Uma das ocorrências, envolvendo um adolescente, está ligada à disputa de território pelas facções de traficantes em um bairro de Fortaleza. A outra história, investigada em um inquérito sigiloso, tenta refazer os últimos passos de um homem que sumiu na mão do Estado.

De acordo com Thiago Holanda, técnico da Defensoria Pública/Rede Acolhe e integrante do Comitê de Prevenção de Homicídios na Adolescência da Assembleia Legislativa do Ceará, são dois enredos delicados e que as famílias só chegaram à Defensoria dois meses depois dos desaparecimentos. Os parentes chegaram a fazer boletins de ocorrência nos dois casos, mas recorreram ao órgão para tentar fazer andar a investigação.

AUTOR: O POVO

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